Divididos pelo ouro

Minga: Reunião solidária de amigos e vizinhos para fazer algum trabalho em comum.

Migalhas: Restos ou sobras que dão a alguém ou que alguém aproveita.

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Ano de 2020.

Futebol, cervejas, churrasco, suor compartilhado, trabalho em equipe. Risos. Nove pessoas com botas de borracha amarelas e facões na mão sorriem para a câmera. Outras, como se fosse uma coreografia, capinam em pedaço da mata para preparar o campo. Ao fundo, uma máquina gira e o cimento vai tapando os tijolos que sustentarão a construção de uma casa comunitária. O telhado é de zinco. Vários homens levantam um poste de madeira no qual instalam uma caixa de eletricidade. Em todas as fotos há sol, como anunciando que a felicidade não existe ou não é para sempre.

“Esses eram os nossos eventos sociais que aconteciam antes de a empresa chinesa envenenar a consciência de alguns moradores”, diz Patricio Villamil, três anos depois, enquanto envia fotos pelo WhatsApp. Villamil é o presidente da comunidade de Shiguacocha, um povoado de 50 famílias na zona rural do cantão (equivalente a município) Carlos Julio Arosemena Tola, na província (equivalente a Estado) de Napo, na Amazônia equatoriana.

A empresa chinesa chama-se Terraearth Resources e se dedica à extração de ouro. Mas nem sempre teve esse nome. A companhia tem um histórico amplo de mudança de nomes, atividades e acionistas.

Em 10 de outubro de 2001, constituiu-se em Quito a empresa RBBPACAY-RIO VERDE S.A. voltada à assessoria jurídica, financeira e contábil. Em junho de 2004, recebeu capital estrangeiro da empresa Merendon Mining Corporation LTD., que, por sua vez, tem capital em Belize e está registrada em Honduras. Em julho do mesmo ano, mudou seu nome para Merendon del Ecuador S.A. Em outubro de 2004, alterou o objeto social: deixou de prestar assessoria jurídica para extrair minérios. Em 29 de setembro de 2011, o nome mudou para TerraearthResources S.A. Em 2017, Peng YongMing e Wang, ambos de nacionalidade chinesa, tornaram-se os acionistas da mineradora.

Shiguacocha está dentro da concessão Regina 1S, que consiste em 1.650 hectares concedidos pelo Estado à Terraearth Resources para atividades de mineração de ouro em pequena escala.

De acordo com a iniciativa MapBiomas Amazonia, entre março de 2017 e março de 2022, foram identificados 281 hectares de florestas e áreas agrícolas desmatados somente nessa concessão. O equivalente a quase 400 campos de futebol profissional. A empresa Terreaerth Resources acusa a mineração ilegal em seus territórios e a falta de controle do Estado por esse aumento excessivo.

A atividade extrativista de minerais em Equador começou há mais de 25 anos. No entanto, entre 2015 e 2023 houve uma expansão de 300% na bacia amazônica, de acordo com uma comparação multitemporal do Monitoring of the Andean Amazon Project (MAAP).

“Se olharmos para trás, as primeiras mineradoras vieram se instalar em zonas rurais habitadas por comunidades indígenas que desconheciam o que vinham fazer e que, além disso, não tinham educação. Algumas nem ao menos falavam espanhol. As empresas chegaram oferecendo trabalho, favores, dinheiro. Faziam os idosos colocarem suas impressões digitais em alvarás, documentos, contratos ou compravam o terreno a valores irrisórios. Os povoados começaram a se dividir entre os que tiravam algum proveito das empresas recém-chegadas e os que assistiam com dor à destruição de suas terras, suas águas, seu habitat”, explica Andrés Rojas, Defensor Público de Napo.

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Esta foto é tudo o que resta da solidariedade da comunidade de Shiguacocha, quando, em 2020, na minga, os moradores se uniram para construir uma casa comunitária. Foto / Cortesía

Existe mineração legal no Equador?

“Toda a mineração em Napo é ilegal”― garante Andrés Rojas ― porque não foram cumpridos os procedimentos legais, os planos de gestão ambiental, nem os planos de remediação”. Segundo Rojas, em Napo não existe uma única concessão de mineração concedida com consulta prévia, livre e informada, além disso, nenhuma delas se submeteu às diretrizes ambientais estabelecidas no Código Orgânico do Ambiente e em seu regulamento.

Na greve nacional de junho de 2022, que durou 18 dias, uma das principais reivindicações do setor indígena foi a implementação da Lei e do Regulamento que indica como deve ser realizada a consulta prévia. O presidente Guillermo Lasso, comprometeu-se na época a apresentar um projeto de Lei de Consulta Prévia, Livre e Informada, no prazo máximo de 100 dias. 10 meses se passaram e ainda não existe esse instrumento jurídico.

Eduardo Rojas, por sua vez, insiste em que em 2010 a Corte Constitucional fez uma divulgação sobre a consulta prévia, livre e informada e que aí já foi considerado o caminho a seguir para emitir a normativa. Mas nem a Assembleia Nacional, nem o Poder Executivo levaram em consideração essas diretrizes.

“O Estado não pode dizer que não possui diretrizes para fazer a consulta enquanto não houver lei, porque a Corte Constitucional já forneceu algumas sobre como fazer uma consulta”, diz o Defensor Público de Napo.

A verdade é que nunca ninguém consultou uma comunidade da província sobre as atividades extrativistas realizadas em seus territórios. Os habitantes de Shiguacocha confirmam isso e dizem que, décadas atrás, eles também convenceram seus avós a explorar suas terras. Receberam esmolas e "agora não cresce nada".

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No alto de um pequeno morro, próximo à comunidade, é possível ver um grande pasto que não inspira confiança. São terrenos abandonados que pertenceram à Terraearth Resources. Após serem minerados, há mais de cinco anos, ficaram assim. Com a solidão da erva daninha ―os moradores locais a chamam de “cortadora”―, avisando que não haverá mais que isso porque tudo embaixo está contaminado.

Fiodor Mena é presidente do Colégio de Engenheiros Ambientais do Equador e foi, até 6 de abril de 2023, Diretor Regional do Ministério do Ambiente, Água e Transição Ecológica. Segundo estudos do corpo colegiado, estima-se que o reflorestamento de um hectare da Amazônia intervencionado pela mineração custe US$ 57.467. Mena garante que, para evitar esses custos, as empresas preferem deixar os campos abandonados e que, sem um correto processo de reflorestamento, os solos ficam contaminados e o que cresce não serve nem para a agricultura.

Assim, como esse pampa solitário, Mena assegura que permanecem todas as antigas e esquecidas frentes de mineração que o Ministério do Ambiente, Água e Transição Ecológica reconheceu, em suas vistorias, que não tiveram um reflorestamento adequado. O Ministério iniciou sete ações administrativas contra a Terraearth Resources. Todas estão em processo inicial, porém a empresa continua operando.

Em 23 de setembro de 2022, Fiodor Mena, como Diretor Regional do Ambiente desde 10 de janeiro de 2022, foi uma espécie de mediador entre os representantes da Terraearth Resources, que pediam permissão para usar a água do rio Sinchuyacu em suas atividades, e os grupos sociais, que compareceram à audiência para solicitar para não emitirem mais nenhuma única licença para a Terraearth Resources, após estudos da Universidade IKIAM comprovarem que, devido às descargas diretas feitas no rio Chumbiyacu, este foi declarado morto em 2021.

Nessa reunião, os ativistas ambientais acusaram a empresa de contaminar os rios, ao que o advogado da Terraearth Resources, Daniel Cruz, aceitou que houve descargas diretas de material contaminado em fontes hídricas, mas que a culpa é da mineração ilegal que invade suas concessões.

Hernán Lema, consultor ambiental da Terraearth Resources, insistiu em que toda a má gestão ambiental, contaminação e morte dos rios é apenas um sinal de que o Estado não teve capacidade de controlar a mineração ilegal e que a Terraearth Resources apenas fornece trabalho e licenças para mineradores artesanais lavarem o solo ao redor de suas retroescavadeiras.

Do lado de fora da sala da reunião naquele 23 de setembro de 2022, por três horas os moradores de Santa Monica e a comunidade vizinha de Shiguacocha seguraram cartazes em apoio à mineradora. Eles foram trazidos de ônibus. O gerente da Terraearth Resources, Peng Yongming, diante das reivindicações dos grupos sociais, em determinado momento da audiência perdeu a cabeça e gritou em chinês alguma ordem que fez os moradores de Santa Monica encherem em silêncio as salas do escritório do Ministério Regional do Ambiente. Houve uma briga entre Yongming e um ativista e Fiodor pediu para os membros da comunidade saírem. "Não se deixem tratar assim", disse, no final da reunião, Yessenia Hernandez, representante de Napo Resiste, aos membros da comunidade de Santa Monica que faziam fila e seguiam um chinês com um macacão azul que os conduziu de volta aos ônibus.

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A comunidade de Santa Monica chegou de ônibus para apoiar a empresa Terraearth Resources em uma audiência nos escritórios regionais do Ministério do Ambiente. Foto / Cortesía

Fiodor não cedeu ao uso do rio Sinchyacu pela mineradora:

― Houve muitas inconsistências nos relatórios, além de proibições de operação―, disse esboçando um sorriso.

―Também não aprovei o Certificado de não afetação de recursos hídricos que a Terraearth solicitava e, sem isso, também não pode operar―, lembrou Fiodor.

Essa foi uma das suas últimas decisões antes de ser substituído em 4 de abril de 2023.

― Como se manteve por tanto tempo no cargo de Diretor do Ambiente de Napo, se é um defensor dos direitos da natureza?

Na tela do Zoom, entre aqueles óculos que o fazem parecer um cientista, Fiodor Mena sorri e suspira antes de responder.

― Tem muita pressão, sim, aí se vive com muita pressão.

As disputas e a pressão pelo controle do território entre as mineradoras e os moradores são mais frequentes do que parece.

“Não existe mineração boa. A condição para que essa atividade extrativista entre no território é sempre a violência”, afirma Mishel Báez, professora da Pontifícia Universidade Católica do Equador, cientista política e especialista em questões de mineração.

―A estratégia é sempre a mesma: procuram um par de famílias com quem negociam primeiro: lhes dão trabalho e vantagens econômicas. É o que chamamos de tecnologia da divisão. Sabem da força das comunidades amazônicas e, para tomar posse da terra, devem dividir―, insiste Báez.

Outra das jogadas que se repete em todos os assentamentos de mineração ― Báez confirma que o modus operandis tem sido o mesmo na Argentina, no Chile e no Brasil, segundo seus estudos― é aproveitar a estrutura patriarcal e oferecer viagens, dinheiro e álcool aos presidentes das comunidades para aliviar a resistência que geralmente vem das mulheres.

E, por último, Báez diz que é preciso prestar atenção à nova forma de divisão que está relacionada à brecha geracional. Eles oferecem tecnologia, dinheiro e novas ideias de progresso aos jovens, afastando-os da defesa da natureza dos idosos.

Tudo isso aconteceu em Shiguacocha.

Desde 2016, quando Patricio Villamil assumiu a presidência da comunidade, vem denunciando ao Ministério Público, à Defensoria Pública e a outras lideranças comunitárias que, em mais de 20 anos de exploração mineradora em seus territórios, lhes ofereceram de tudo, e eles não receberam nada. Que continuam pobres, agora sem água e sem terras produtivas.

Mas nem todos concordam com ele. Há comunidades que afirmam que mineradoras como a Terraearth as ajudam sim.

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O ouro extraído dos solos é então misturado ao mercúrio para poder ser separado dos outros minerais. O mercúrio é proibido no Equador para atividades mineradoras. Foto / Cortesia

Raúl Grefa é um dos representantes da comunidade de Santa Monica que acompanhou a Terraearth no pedido de utilização do rio Sinchuyacu. É uma população vizinha à Shiguacocha, com quem compartilhava o rio Chumbiyacu. Ou compartilham, mas o rio já não é mais uma fonte líquida e cristalina, mas sim uma espécie de lahar pantanoso. Em 2020, um estudo da Universidade Amazônica de Ikiam comprovou que o rio Chumbiyaku tinha 500 vezes mais metais pesados do que o aceitável. Que não há vida: nem um único peixe passa pelo que antes era uma fonte de pesca das comunidades. Que naquele rio nem o plâncton sobrevive. Que o sedimento é tão espesso que os raios do sol não entram.

Grefa concorda que a mineração está destruindo tudo em seu caminho. “Os chineses contaminaram o rio Chumbiyaku, é verdade, e danificaram nossas terras”, aceita. No entanto, insiste em que, dada a situação de carências da comunidade, é preferível ganhar alguns "gramas" de ouro trabalhando com a empresa ou, ao menos, receber alguns caminhões pipa. Que se dependesse dele, "expulsaria" todas as mineradoras de seu povoado e de toda a Amazônia, mas, como não é possível, "precisa se alinhar com alguma".

A culpa é do Estado por ter assinado as concessões. Vivo aqui há 60 anos. Antes os rios eram limpos e cheios de peixes, mas agora está tudo estragado, nos riachos não dá nem para tomar banho. A terra está envenenada”, diz Grefa.

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Os habitantes de Shiguacocha se apegam às memórias. Esta foto é de quando as crianças se banhavam nas águas cristalinas do rio Chumbiyacu. Foto / Cortesia

O Estado Equatoriano perdeu uma ação de proteção imposta por 12 coletivos de defesa dos direitos da natureza de Napo em 2022. O juiz da Corte Provincial aceitou a responsabilidade do Estado equatoriano por não ter controlado as infrações ambientais de mineradoras legais, deixando centenas de passivos ambientais. A Corte deu 180 dias ao Ministério do Ambiente, ao Ministério de Minas e à Agência de Regulação e Controle de Energia e Recursos Naturais Não Renováveis (ARCERNNR) para implementarem um plano de reflorestamento. Essa obrigação expirou em outubro de 2022 sem nenhuma reparação ambiental. Nenhum Ministério se pronunciou sobre o assunto.

Em 24 de março de 2023, por pressão legal dos coletivos, o Juiz de Napo reconheceu que as três instituições não cumpriram o mandato, razão pela qual exigiu, em nova sentença, que sejam destituídos de seus cargos e que em 24 horas cumpram a sentença e o plano de reflorestamento.

Raúl Grefa
Raul Grefa representa a comunidade de Santa Mônica, que apoiou as operações de mineração da Terraearth.

O ministro de Minas, Fernando Santos Alvite, disse a esta aliança, em uma entrevista no dia 23 de janeiro de 2023, que não sabia da questão da Corte de Napo e que pediria informações. A Agência Reguladora respondeu aos pedidos desta aliança dizendo que não dará entrevistas até o novo diretor em exercício, Patricio Bonilla, "se inteirar" dos assuntos da Instituição. Já o Ministério do Ambiente disse que esse pedido de demissão não tem validade e que está em processo de elaboração o Plano de Reflorestamento.

“Assim, ao menos os chineses nos dão um pouco de trabalho, nos deixam bater nas suas concessões”, diz Grefa, acrescentando que “daí, com sorte, podemos tirar, mesmo que seja um graminha de vez em quando (o equivalente a US$ 45)”.

Grefa insiste em que concordaria com a saída de todas as empresas mineradoras de seus territórios. "Se forem embora, que saiam todos, não apenas os chineses, que nos ajudam de alguma forma”.

Na página do Facebook da empresa Terraearth Resources são divulgadas constantemente as ajudas sociais prestadas às comunidades. Por exemplo, uma postagem de 26 de agosto de 2022 relata a entrega de uma panela de 100 litros e 40 frangos à comunidade Santa Monica para comemorar sua fundação. A foto grande angular mostra os membros da comunidade sentados ao redor da quadra de basquete.

Em outra postagem de 27 de dezembro de 2022, alguns jovens de uniforme azul sorriem ao lado de funcionários da empresa. Em mais uma dezena de fotos, vemos pessoas felizes recebendo garrafas de refrigerante, sacos de lixo cheios, meninas com gorros vermelhos de Natal e vários moradores assinando os certificados de recebimento desses presentes. O pessoal da Terraearth Resources aparece em todas as fotos.

A publicação mais recente que contabiliza as entregas da empresa é de 19 de abril de 2023. Lá comemoram os 43 anos da fundação da comunidade Nueva Jerusalén, próxima de Shiguacocha, dentro da concessão Regina 1S. Na foto principal, a bela rainha do povoado posa sorridente com um trabalhador chinês e várias cestas (engradados) de cerveja aos seus pés.

“A moeda de troca para a destruição do território e a divisão comunitária sempre foram migalhas”, insiste Rojas, acrescentando que ofertas como projetos de água potável, casas comunitárias, abertura de estradas ou, às vezes, nem sequer isso, mas alguns dólares servem como tal, desde que as máquinas possam entrar e os mineradores se instalem para explorar o território e levar o ouro.

A procura de ouro no rio Anzu. Foto/Shutterstock

Separados são mais vulneráveis

“A estratégia das mineradoras é dividir. Negociam, compram ou interagem com duas ou três famílias e criam conflitos entre a comunidade. Já é quase um modus operandi”, diz à beira do Rio Anzu, entre a neblina do amanhecer, José Moreno, Coordenador dos grupos sociais que lutam contra os danos ambientais e sociais da mineração em Napo, entre os quais participam as Organizações Indígenas de Napo (FOIN), Napo Ama a vida, a Confederação da Junta de Defesa do Trabalhador Rural do Equador e presidentes de várias comunidades.

Dois dias após essa conversa, em 22 de março de 2023, Moreno foi atacado por mineradores ilegais enquanto acompanhava um grupo de militares em uma operação de fiscalização na paróquia de Talag, no Cantão Julio Arosemena Tola.

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Shiguacocha obteve sua personalidade jurídica em 2008 com 40 sócios e, segundo os estatutos, deveria mudar de presidente a cada dois anos.

“Como nos organizamos entre nós, nem lembramos de continuar com a personalidade jurídica. Fazíamos tudo conversando, em mingas, nas reuniões entre os sócios. Nos dávamos bem, havia atritos como em qualquer grupo, mas nenhum conflito sério até a chegada dos chineses”, confessa Patricio Villamil.

Villamil, segundo documento do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, é presidente de Shiguacocha desde 2016.

“Fiz o trâmite para poder solicitar formalmente às autoridades água potável, esgoto ou vias de acesso”, diz Villamil.

Eles não têm nada disso até hoje

Quando assumiu a Presidência, passou a exigir que a Terraearth Resources cumprisse o que oferecia, como dar emprego às pessoas da comunidade. Também enviava reclamações à empresa quando esta descarregava os resíduos da extração, com altos teores de metais pesados ― chumbo, cádmio, zinco, cobre, bromo, boro e mercúrio ―diretamente no rio Chumbiyacu. Reclamou pelas crianças que começaram a adoecer e pelas terras destruídas que a empresa deixava ao terminar de "lavar o solo".

Lavar o solo significa remover todas as camadas da selva com máquinas pesadas até formar piscinas de 10 metros de profundidade para extrair, com água, mercúrio e outros metais, o cobiçado ouro. Esses líquidos residuais, segundo Aidde Arvizu, geóloga e especialista em geofísica, geotecnia, mecânica dos solos e exploração mineradora, deveriam passar por piscinas de tratamento. Mas isso, em muitos casos, não acontece e eles jogam os dejetos diretamente no rio, conforme verificado pelo Ministério do Ambiente na inspeção de 3 de fevereiro de 2022 na região de Shiguacocha.

"Lavar o solo"

Assim é conhecida a técnica de extração de ouro tanto nas margens dos rios como terra adentro.

As retroescavadeiras do tipo lagarta ingressam no terreno e a primeira coisa que removem é a superfície: a selva em seu estado puro ou áreas agrícolas.

Continuam escavando até chegar ao estrato de argila, que também rasgam com as máquinas. Abaixo estão as camadas mais rochosas. Também as removem. Todo o material é acumulado em montanhas de entulho.

Os buracos gigantes a céu aberto atingem no mínimo 10 metros de profundidade, onde se encontra o tão esperado metal dourado. Dentro dessas piscinas, inicia-se a extração dos minerais que se misturam com grandes quantidades de água que separam os sedimentos (que flutuam) dos materiais pesados que ficam no fundo dos tanques enferrujados.

Esse material passa por umas torres em forma de Z, nas quais se unirá com o mercúrio (que gruda no ouro), o que permite separá-lo de outros materiais. A água final desse processo, na maioria das vezes, é lançada diretamente nos rios.

O mercúrio é então exposto a altas temperaturas para que evapore e o ouro fique em estado puro.

Gráfico: Fermín García

Arvizu insiste que, se as mineradoras tivessem bons controles ambientais, esses danos poderiam ser evitados.

Mas isso não foi feito em Siguacocha. “E nos deixam a terra assim, inútil. Lama inútil e ainda por cima venenosa porque está contaminada, o que vai crescer aí?”, exclama Antonieta Costales, apontando para os limites do terreno do seu sogro.

Isso foi dito em um dia úmido de setembro de 2022. A comunidade quis mostrar a esta aliança jornalística os problemas de suas terras. Duas semanas antes tiveram um confronto com a população de Santa Monica que queria abrir caminho para uma retroescavadeira do tipo lagarta, enquanto os habitantes de Shiguacocha não querem mais a mineração em seus territórios. Dizem ter testemunhado rios mortos e espessos, hectares de solos abertos, pedregosos e inúteis e até poças gordurosas de diesel escorrendo pelo caminho.

Patricio Villamil reclamava de tudo isso. “Eles começaram a não gostar que eu reclamasse tanto. Queriam nos satisfazer com migalhas, e eu não concordei. Desde que fui presidente de Shiguacocha, em 2016, pedia que filiassem os colegas que garimpavam em torno das máquinas. Uma vez me reuni com o gerente da mineradora e ele disse que se eu desse entrevistas e falasse bem da empresa na mídia, eles nos ajudariam com as necessidades da comunidade. Respondi que não faria isso”.

Após muita insistência de Villamil, 19 anos depois de ter a concessão, em 2020 a Terraearth Resources doou US$ 9.000 em materiais de construção para fazerem a casa comunitária. Esse foi um dos momentos mais felizes daquela paróquia rural remodelada na Amazônia. Juntos levantaram a sala com paredes rosadas, janelas sem vidro e com grades pretas, teto prateado e com o campo de futebol ao lado. Desse alvoroço, só restam as fotos.

Naquele sábado de setembro de 2022, os sócios de Shiguacocha se reuniram muito sérios na casa comunitária, sem saber que seria uma das últimas vezes que estariam ali.

Relataram seus sofrimentos e sua tristeza pela violência com que o povoado foi inundado.

Antónia Aguinda lembrou que, quando as máquinas começaram a trabalhar no seu terreno, cercaram uma retroescavadora e um colega quase foi morto com a mesma máquina. Aguinda contou várias vezes esse episódio e, em todas, as lágrimas a acompanharam.

“Os chineses compram consciências, esse é o maior problema, que nossas próprias comunidades, nossas próprias famílias venham nos insultar por sermos contra a mineração”, ecoou Norberto Urresta naquele calor estagnado em meio à raiva dos habitantes de Shiguacocha.

Natali Illapa
Natali Illapa está indignada com os danos causados pela mineração de ouro à terra e ao rio em sua comunidade.

“Não quero compaixão, quero justiça para Shiguacocha”, insistiu a jovem Natali Illapa e relembrou daqueles fins de semana em que tudo era uma festa em torno da construção da casa comunitária.

O campo de futebol acabou abandonado, ninguém mais se atreve a jogar ali. Naquele 22 de setembro, no final da assembleia, partiram em silêncio, sem deixar vestígios da emoção que experimentaram naquele mesmo lugar há quase três anos.

A disputa entre 50 famílias foi longe

Quito, DM, 30 de março de 2021

Assunto: REGISTRO DO CONSELHO DIRETOR E INCLUSÃO DE MEMBROS DA COMUNIDADE KICHWA “SHIWA COCHA” DO RIO ANZU

Senhor

Nelson Humberto Aguinda Andi

Presidente responsável

COMUNIDADE KICHWA SHIWA COCHA

Em seu Despacho

Da minha consideração:

Assim começa uma notificação da Secretaria de Direitos Humanos em que reconhece Nelson Aguinda como presidente da comunidade. Além disso, endossa as resoluções de uma suposta Assembleia realizada em 21 de fevereiro de 2021, entres as quais consta a reeleição de Nelson Aguinda como presidente com 36 votos a mais, sendo 14 votos para o segundo candidato e 10 votos para o terceiro. Foi aprovada a inclusão de 40 novos sócios e a exclusão de 9 pessoas da comunidade, entre essas, Patricio Villamil.

Segundo o documento, a Assembleia começou às 15h10 e terminou às 14h20.

― Imagine, havia tantas inconsistências que até a hora estava errada. Nunca nos avisaram da reunião e, sem explicação, decidiram nos retirar da comunidade. Teve pessoas que, antes de serem aceitas como sócias, já deram o seu voto. Dos supostos 40 novos sócios, menos de cinco vive em Shiguacocha―, diz Patricio Villamil irritado.

― Mas, entre as pessoas que assinam esse documento, há os sobrenomes Villamil, Aguinda, Gualinga.

―Isso mesmo, e são da minha família e de outras pessoas da comunidade, porque foi isso que a empresa fez, ela nos dividiu. É doloroso ter de brigar com o mesmo sangue. Eles começaram a dizer que eu era contra o progresso do povo, que não os deixava se beneficiar. Eu só estava tentando explicar que estavam nos dando esmolas, mas, quando a empresa sair, nos deixará mais pobres, com terras inúteis e com ódio.

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Patricio Villamil (centro), presidente de Shiguacocha, e outros moradores de Shiguacocha confrontam alguns vizinhos que concordaram em alugar sua propriedade para "lavar a terra".

A Terraearth Resources teve, na concessão Regina S1, 29 inspeções de controle e monitoramento do Ministério do Ambiente entre 2013 e 2022. Apenas em uma, a realizada em 3 de fevereiro de 2022, foram detectadas mais de 55 descumprimentos ambientais, entre os quais consta a verificação, no momento da fiscalização, de descargas diretas no rio, a inexistência de piscinas para tratamento das águas residuais, 55 galões de combustível em mau estado, falta de separação de resíduos nas frentes de trabalho. Por isso, desde 6 de setembro do mesmo ano foi proibida de continuar operando.

No entanto, segundo imagens de satélite de Planet, entre setembro de 2022 e maio de 2023, três frentes de mineração foram ampliadas na região de Shiguacocha.

O rio do qual a comunidade vivia, o Chumbiyaku, esse que a Universidade de Ikiam confirmou ter 500 vezes mais metais pesados do que o permitido, continua morto. A população vive da água da chuva que recolhe em cisternas de plástico azul colocadas em cima das suas casas de madeira.

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A população levantou tanques azuis para coletar água da chuva, sua única fonte de água potável. Foto / Cortesía

O tio de Patricio Villamil também exerce liderança e realizou esse trâmite em Quito com outras três famílias para criar uma nova diretoria pelas costas do sobrinho.

Enquanto isso, Villamil enviou à Secretaria de Direitos Humanos uma petição para revogar as decisões tomadas naquela tarde de 21 de fevereiro de 2021.

Foi um ano e quatro meses de cartas, relatórios, notificações, pagamentos a advogados, assinaturas e e-mails até a Justiça dar razão (pela metade) a Villamil, deixando sem efeito a Ata da Assembleia de 21 de fevereiro que expulsou 9 membros da comunidade, escolheu outro presidente e filiou mais 40 pessoas (quase todas de sobrenome Aguinda).

No entanto, a Corte de Justiça de Napo também decidiu que poderia ser mantida a personalidade jurídica de Shiwa Cocha, liderada por Nelson Aguinda.

Enquanto isso acontecia nos edifícios judiciais, as famílias da comunidade de Shiwa Cocha retinham a chave da casa comunitária construída em 2020. Ao ser proferida a sentença, Patricio Villamil as recuperou.

― Então a comunidade se chama Shiguacocha ou Shiwa Cocha?

― Agora existem as duas. Somos 36 sócios em Shiguacocha e sou o presidente reconhecido pelo Conselho de Participação Cidadã. Sou o presidente de fato, mas não de direito, por não ter personalidade jurídica. As outras quatro famílias, incluindo a do meu tio, formam Shiwa Cocha e ficaram com a representação legal.

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Patrício Villamil, presidente da Shiguacocha, diz que sua comunidade está sofrendo graves danos ambientais e divisões sociais depois de mais de duas décadas de mineração não regulamentada.

Patricio Villamil conta que, apesar da humildade do povo ―oito em cada dez pessoas no cantão Carlos Julio Arosemena Tola vivem em extrema pobreza (com menos de dois dólares por dia) e não têm acesso à água potável― a maioria dos sócios de Siguacocha deu cotas de mais de US$ 100 para pagar advogados e se defender do "outro lado" que até chegou a pedir que retirassem as escrituras de suas propriedades.

―Nem todos conseguiram pagar a cota, então fiz um empréstimo que estou pagando até hoje. Não sei que dinheiro os “outros” vão usar para pagar tanto advogado―, insiste Villamil.

Os habitantes de Shiguacocha dizem que continuarão lutando até que a Terraearth Resources seja penalizada pelos danos ambientais e sociais que está deixando para trás. “Mesmo que seja vendendo nossas últimas galinhas, vamos lutar”, diz Patricio Villamil.

Até o momento não há sanções em caráter definitivo contra a empresa por parte de qualquer órgão público, além dos laudos técnicos do Ministério do Ambiente.

Em dezembro de 2022, Shiguacocha organizou uma festa de Natal. Quando quiseram entrar na sala comunitária - aquela construída em minga, com risadas, futebol, comida e cerveja -, perceberam que estava com outros cadeados. As famílias de Shiwa Cocha pediram ao intendente da polícia que mantivesse o local fechado.

“Ficamos sem poder comemorar com as crianças”, lamenta Patricio Villamil. “Podem existir empresas que cumprem com suas obrigações, mas esta mineradora parece ser feita pelo próprio diabo. Eles não estão interessados nas famílias, não estão interessados na comunidade, não estão interessados no bem-estar. Só estão interessados em tirar a riqueza à custa de toda a exploração”, disse Villamil, por telefone, antes de iniciar sua jornada de trabalho como segurança em outra cidade, onde cumpre em turnos porque em seu povoado não há empregos nem terras férteis. nem água.

Nós voltamos a nos comunicar com o advogado Cruz, que representou a Terreaearth Resources naquela audiência em 23 de setembro de 2022. Cruz disse que não sabia nada sobre o assunto da divisão social. Esta aliança tentou contatar algum responsável da empresa, sem conseguir resposta até o fechamento desta edição.

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Em 31 de outubro de 2022, a Terraearth Resources obteve a aprovação das licenças ambientais do Ministério do Ambiente, Água e Transição Ecológica para o Projeto Tena, uma concessão de mais de 7 mil hectares no cantão Tena, adjacente ao cantão Carlos Julio Arosemena Tola. onde fica Shiguacocha.